sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O fim dos 'valentões' - Jornal de Letras / Educação 20-12-2006

«Tratar os outros da mesma forma que queremos ser tratados». Esta é a regra de ouro que o professor norte-americano Allan Beane, 56 anos, doutorado em Filosofia e Educação e consultor em Educação, pretende incutir aos alunos, pais e professores com que tem trabalhado nos últimos 30 anos.
A violência nas escolas é o tema que o trouxe a Portugal. É autor do livro A Sala de Aula Sem Bullying , publicado nos Estados Unidos em 1999 e agora em Portugal, pela Porto Editora, um guia estratégico, especialmente dirigido aos professores do 1º, 2° e 3° Ciclos do Ensino Básico, com o objectivo de pôr termo à violência praticada por alunos nas escolas.
Traduzido à letra para o português, um bully é um valentão, um agressor, alguém que escolhe as suas vítimas para intencionalmente lhes provocar dor. Nos Estados Unidos, uma em cada sete crianças que frequentam as escolas são bullies ou vítimas. Esta realidade não se compara à portuguesa, mas existem suficientes casos relatados em jornais, nas conversas, reuniões entre pais, alunos e professores para que esta preocupação tenha um fundamento. Muitas vezes silenciadas pelo medo do agressor as vítimas nem sempre pedem ajuda.
Os adultos que as acompanham nem sempre se apercebem da dor que estas situações provocam até que as consequências denunciem esta realidade.Nos casos mais extremos o suicídio foi a única solução que as vítimas encontraram para se livrarem de repetidos maus-tratos. A auto-mutilação, o stress pós-traumático, o medo de frequentar uma sala de aula manifestam-se sobretudo num fraco aproveitamento escolar, abandono escolar, em consequências do foro psicológico que comprometem o desenvolvimento e o futuro das crianças. Com apenas 23 anos, o filho de Allan Beane faleceu.
A violência e os maus-tratos de que foi vítima nas escolas foram factores decisivos para a forma com a sua vida encontrou um fim. A vida e a morte deste jovem inspirou o pai a escrever o seu primeiro livro, A Sala de Aula sem Bullying e a desenvolver o programa Bully Free Programe, ao qual, nos últimos dois anos, se tem dedicado inteiramente. A escola é um lugar que privilegia a segurança e o desenvolvimento intelectual, não o medo e a violência.
Este é o propósito de Allan Beane: «Não quero que mais crianças sofram por causa deste problema».
Jornal de Letras: Como acompanhou o caso do liceu Columbine, em 1999 onde dois alunos disparam sobre vários colegas e professores com armas de fogo?
Allan Beane: tinham acontecido outros tiroteios noutras escolas.Nessa altura já tinha reconhecido um dado comum: muitos dos responsáveis por esses actos eram vítimas de maus tratos por parte de outros colegas. Enviei uma carta ao director desse liceu com essa informação. Recebi uma resposta isolada: «Agradecemos a informação...» Estava no Canadá quando aconteceu o massacre em Columbine. Passei toda a noite a acompanhar o caso, na televisão onde ouvi vários estudantes dizendo que iriam ter mais cuidado com a forma como tratavam os outros.Tornou-se óbvio que os autores dos disparos eram vítimas de bullying. Estudos revelam que 75% dos alunos que cometem este tipo de actos são vítimas. Este é um problema muito grave no nosso país.
- O que é o bullying?- É um comportamento repetitivo de um indivíduo ou de um grupo, em que há um balanço de poder. Os Bules têm a intenção de magoar física ou psicologicamente. Para decidir se uma criança está em situação de bullying é preciso averiguar se há intenção de provocar dor, se há alguém que está a ser magoado e se essa pessoa é repetidamente um alvo. Há miúdos que são mal tratados todos os dias, ou quase todos os dias. Também pode acontecer entre professores e alunos e entre professores. Há adultos dentro das escolas que também se mal tratam. É um comportamento hipócrita... dizer aos miúdos para obedecerem à regra de ouro e estar a quebrá-la. É importante que os adultos e as escolas sejam modelos dessa regra: a forma como tratamos os outros é a mesma como devemos ser tratados.
- Porque as crianças se tornam bullies?- Acredito que não foram disciplinadas em casa. Por isso não têm auto-controlo. Não lhes foi ensinado a estimar os outros. Por vezes sofreram vários abusos, então vão para a escola abusar de outros. Ou vêm o pai a bater na mãe e pensam que isso é uma coisa de homem.Há muitas outras razões. Muitas vezes os bullies pensam à partida que vão ser desrespeitados, por isso, não têm respeito pelos outros. Pensam mal acerca deles próprios e têm necessidade de o provar.Estão realmente revoltados e precisam de exprimir essa raiva. A razão porque há bulhes é porque o permitimos ou porque o ignoramos.
- Porque é que as vítimas o permitem?- Os bullies querem usar poder e controlo sobre alguém. Querem magoar. Se esse alguém é passível de ser magoado, então é uma vítima. Algumas características são a falta de auto-estima, falta de confiança, incapacidade de se defesa verbal ou uma estatura física pequena. Os bullies costumam fazer bully shopping: procuram crianças que possam magoar.
- É um comportamento que pode ser travado?- Podemos reduzi-lo. Alguns professores poderão eliminá-lo na sala de aula. É o que devemos tentar fazer. Tentar travá-lo completamente. É muito difícil conversar com crianças verdadeiramente agressivas. Isso não vai mudá-las. É preciso que haja consequências para os seus actos. Temos de as ensinar e de as envolver em situações de entre ajuda. Mas é muito difícil mudar um verdadeiro bully. A agressão é uma postura muito estável. Mas não é impossível. Tenho conhecimento de grandes resultados. No meu site, www.bullyfree. com, pode-se encontrar muita informação sobre casos de sucesso.Com o meu programa conseguimos aumentar a presença dos alunos nas aulas, reduzir casos de violência, suspensões e expulsões. E também aumentou o número de alunos que afirmam que vão passar a denunciar os bulhes.
- Pensa que há muita gente que lida com este problema através do silêncio?- Na maior parte das vezes quando as crianças tentam ignorar o problema ou escondê-lo, alguns adultos não compreendem o quão doloroso e perigoso pode ser. Ou muitas vezes o pensamento adoptado é: faz parte do crescimento, não há razão para preocupações... Há professores que não se querem envolver, porque têm de trabalhar mais, passar mais tempo com os alunos e com os pais. Infelizmente há professores que querem tornar o seu trabalho o mais fácil possível.
- Porque escreveu este livro?- Quando o meu filho experimentou este problema, pensei em como poderia ajudar, como poderia reduzir este tipo de violência. Comecei a desenvolver ideias, a delinear estratégias, fiz pesquisa em psicologia social e comecei a falar com professores sobre este problema.Começámos a ter ideias e a testá-las. Escrevi o livro baseado em experiências, testes, com muito pensamento criativo, tentando trazer tópicos exteriores ao campo da Educação para dentro dele.
- Quem é o alvo principal?- Professores e directores de escolas. Há materiais no livro que os professores podem enviar para os pais. Tenho outros livros indicados especificamente para pais e para crianças, mas em Portugal ainda só foi publicado este livro.
- O que o fez publicar este livro em Portugal?- O professor Luís Miranda Correia [director do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho] ouviu falar sobre o livro e considerou-o de grande utilidade. Foi ele que fez a proposta à editora.
- De que forma tem acompanhado a realidade portuguesa do Ensino e da violência nas escolas?- Não conheço essa realidade. Mas hoje, numa conversa com 17 alunos de um liceu em Lisboa, dois deles admitiram serem vítimas de bullying. Não sei qual é a percentagem em Portugal, mas sei que é um problema que existe em todo o lado.
- Há um perfil de escola em que este problema seja mais frequente?- Há estudos a ser feitos sobre violência em escolas. Revelam que a pouca de supervisão de adultos e a falta de disciplina pode trazer problemas. O mesmo acontece quando a administração das instituições não apoia suficientemente os professores ou quando, no que respeita os alunos, não existem consequências para os seus actos.
- Gostaria de deixar alguns conselhos para que lida com este tipo de violência?- Aos professores: não tolerem este comportamento. Aprendam o máximo que possam e façam tudo o que puderem para travar o bullying. Os pais também precisam de aprender sobre este problema e dizer aos filhos que não toleram este tipo de situações. Disciplinem os filhos, ensinem-nos a ser amáveis com a pessoas, a dar importância aos sentimentos e que não devemos magoar os sentimentos dos outros. Somos todos diferentes, mas todos temos a mesma capacidade para sentir. Aos bullies: parem com isso! Se têm algum problema, peçam ajuda. O respeito pelos outros pode abrir uma infinidade de portas e aumenta seguramente a possibilidade de se ser uma excelente pessoa e de ir muito mais longe na vida. Os bullies terão certamente uma vida muito infeliz. Vão perder com frequência o emprego por desrespeitarem os outros, vão provavelmente ter um cadastro criminal... Deixem que os ajudem a mudar.
- Já foi vítima de bullying?- Não. A minha infância foi muito boa. Havia um miúdo no meu bairro que me bateu muitas vezes, mas também jogámos muito basquetebol e dávamo-nos bem. Ele tinha aspecto de bully e às vezes agia como um, mas não tentava ser mau todos os dias. Eu gosto dele. Ainda penso nele como um amigo. Acho que ele tinha ciúmes. Eu jogava melhor do que ele...

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