domingo, 1 de março de 2009

Bullying, a violência entre iguais

João, 14 anos, era excelente aluno. Levou a peito a atitude e os sms dos amigos. Em Fevereiro suicidou-se. A família aponta esta como a grande causa, apesar da escola rejeitar a ligação. O fenómeno do bullying, o enquadramento de especialistas e outras histórias de violência entre alunos.

Pode ser demasiado cruel o recreio da escola. Tem menos protecção para quem é posto de parte por alguns colegas. E está-se também mais exposto. João (nome fictício), 14 anos, sabia-o bem: tinha o nome inscrito no quadro de honra dos melhores alunos do 9.º ano, praticava desporto e jogava futsal como um craque, era popular e as miúdas achavam--no o máximo; talvez fosse sensível de mais para as pessoas que o rejeitavam. O próprio psicólogo que o acompanhava nas Oficinas de S. José, dos Salesianos, Lisboa, onde ele estudava, reparou num problema, recorda alguém que lhe era próximo: 'ele queria dar-se bem com toda a gente, mas não sabia gerir muito bem possíveis conflitos.' João estava a ser alvo de bullying – um termo que descreve a violência psicológica e física perpetrada pelos pares, colegas de escola, continuada no tempo e com o intuito de humilhar, rebaixar ou controlar, de alguma forma, alguém.

No seu caso, atacar a sua popularidade era uma forma de atingi-lo. Tudo terá começado quando, no início deste ano lectivo, João denunciou a um amigo um caso que se passava, à sua revelia, provocado por outros três colegas. Acontece que os quatro se juntaram e passaram a excluí-lo. Incompreendido, João desabafou com a sua directora de turma e com a família.

'Punham-no de parte e influenciavam outros a fazê-lo', relata a mesma pessoa. 'Sei que lhe mandaram mensagens de telemóvel a insultá-lo. Uma vez, que ele era para ir a uma festa – e que acabou por não ir – mandaram--lhe, depois, uma mensagem a dizer que ele não tinha ido porque ninguém gostava dele. Eram mensagens para o rebaixar, humilhar, para dizer que ele era um desgraçado que não tinha amigos. O que era completamente falso.'

Para os Salesianos, o processo educativo só se completa quando a família do aluno e a escola se envolvem em prol do mesmo. João passou a ser uma das 60 crianças a ter apoio psicológico da instituição. A mãe ficou em contacto estrito com a directora de turma, contou à Domingo, num encontro onde estivam presentes também o director pedagógico daquela instituição, a directora de turma e a coordenadora de ciclo.

João tinha maturidade. Falava roçando um ar de adulto. Mas tinha a mesma vontade de brincar e de se divertir de qualquer adolescente aos 14 anos. 'Ele era diferente da maioria dos casos de bullying onde, por norma, as pessoas fecham-se. Ele transmitia alegria, vontade de viver, tinha muitos projectos', conta a mãe. Um deles era fazer a viagem de finalistas do 9.º ano, a Paris; o outro, era figurar no 'quadro de excelência' da escola – que existe a par do 'quadro de valores', que distingue as boas pessoas –, para ter acesso à bolsa de estudo que iria aliviar a mãe e o avô da mensalidade. Quem o conhecia acredita que provir de uma condição económica diferente da maioria dos colegas e, por outro lado, ser exemplar na sua prestação escolar e desportiva, poderia torná-lo um alvo de bullying.

Todos os projectos de João ficaram suspensos. Sem que ninguém o previsse, o adolescente suicidou-se em Fevereiro, numa noite em casa – depois de se divertir a jogar ao ‘Guitar Hero’, na PlayStation3. A família acredita que o bullying despoletou o suicídio, a par da ansiedade por saber as notas do segundo período. A comunidade escolar prefere não associar estes factores ao trágico acontecimento, alegando que factores familiares somados a outros convergiram para este desfecho.

É sintomática a preocupação manifestada pelo procurador-geral da República ao constatar que só na região de Lisboa foram abertos 'cerca de 111 inquéritos', em 2008, relacionados com violência escolar – muitos contra a integridade física de professores e outros elementos escolares. Outros são furtos. Importa esclarecer que a grande maioria destes casos não são de bullying.

'Assistimos a um pico de bullying em 2002 e que, agora, está a baixar. Acontece que toda aquela indisciplina que se assiste nas escolas não é bullying, que não tem nada a ver com a relação do aluno com o professor, nem com a sala de aulas' – esclarece Margarida Gaspar de Matos, psicóloga e docente na Faculdade de Motricidade Humana, Lisboa.

Nesta forma de agressão, muitas vezes silenciosa, a internet e os telemóveis revelam-se armas de bullying – é o fenómeno cyberbullying. Além de atingirem a vítima, muitos deles procuram uma – perversa – plateia. Sónia (nome fictício), hoje com 21 anos, viu a sua página pessoal no Hi5 (rede social) clonada. Há dois anos alguém copiou as suas fotos para criar um personagem. Seria 'um adolescente que estava farto da ex-namorada porque ela não o deixava em paz e fê-lo para ela perceber.' Ou seja, ele mantinha conversas apaixonadas com a rapariga das fotos. Sónia sentiu--se usada por alguém ter-se apropriado da sua identidade fotográfica para fins desconhecidos. Isso assustou-a.

O medo de não conhecer o agressor, como Sónia, pode ser tão grande como o de quem teme represálias por ter pedido ajuda a alguém. Pedro, 13 anos, reconhece que o melhor é ninguém associar o seu nome à sua imagem. No Restelo, Lisboa, a sua escola também é frequentada por alunos-filhos de classe média-alta. Os mais velhos dirigiam--se a ele com frequência obrigando-o a contar anedotas ao sabor de ‘calduços’.

'Sabe o que é um moche? Sabe o que são 20 miúdos em cima de si? Dói, pois dói' – conta Pedro. 'Sou conhecido em toda a escola como um ‘nerd’ (marrão). Nesta sociedade de hoje, nas crianças, ser bom aluno é mau. Para eles, o fixe é fumar e beber cerveja, aos 14 anos. Quem tem boas notas é um ‘nerd’'.

Apesar de importunado, o adolescente já se tinha habituado a ser alvo de troça. O culminar da tensão a que estava sujeito surge quando o mesmo grupo de sempre – desta vez eram dez – o aterrorizou. 'Ia ao McDonald’s ter com amigos quando me atacaram. Cinco deles é que participaram furtivamente, empurrando-me e dando-me ‘calduços’ e ‘carolos’'. Só o largaram, embora que por pouco tempo, quando ameaçou participar à escola. À saída do restaurante de fast-food, o grupo foi atrás dele, um deles empunhava um tabuleiro. 'Comecei a correr mas eles foram mais rápidos. Bateram-me e um deles deu-me, duas vezes, com o tabuleiro na cabeça. E caí na lama' – conta esmorecido. 'O mais humilhante é que filmaram e puseram no YouTube', denuncia.

Antes, Pedro falava com a mãe e rejeitava a sua intervenção. Desta vez, ligou-lhe logo. 'O meu pai foi à escola e fez um pouco de escândalo – era preciso – e desde esse dia dou um aperto de mão aos polícias da Escola Segura, de manhã, por protecção.' Pedro estava farto de fugir deles, nem podia chegar perto do campo de futebol. 'Ir aos balneários, isso é que não podia mesmo!'
Neste caso, a escola suspendeu o aluno que lhe deu com o tabuleiro por três dias; outros dois colegas com dois dias; e mais dois com um dia.

In Correio da Manhã (texto encurtado)